Quando no dia 1º de maio um incêndio fez desabar os 24 andares do edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, matando oito pessoas, sendo duas crianças, o país voltou-se para um problema que tem se agravado com a expansão desordenada dos centros urbanos: as ocupações de imóveis abandonados por quem mora em habitações precárias e por aqueles que se abrigam como podem sob marquises e viadutos.
A tragédia dos sem-teto, como ficou conhecido o episódio, ampliou a visibilidade de um grupo social bastante vulnerável. Por conta das ocupações, está exposto a riscos de acidentes, como o do curto-circuito que pôs abaixo o marco da arquitetura modernista projetado em 1961 por Roger Zmekhol, e também aos confrontos com a polícia.
Das mãos da iniciativa privada, o prédio passou ao patrimônio da União em 2002, em pagamento de dívidas. É o tipo de imóvel geralmente na mira dos movimentos por moradia popular. Chegou a abrigar órgãos públicos — a Polícia Federal foi o último. Uma vistoria posterior da prefeitura detectou o perigo das instalações elétricas improvisadas e das divisórias dos antigos escritórios que forneceram as centelhas e o material básico para a combustão.
Desastres como a que abalou o Largo do Paiçandu têm como causas diretas a fiscalização deficiente dos órgãos públicos. Revelam igualmente a ausência de ação coordenada para sanar o expressivo deficit habitacional no contexto de políticas de desenvolvimento urbano ainda por deslanchar e do excesso de burocracia. Pelo último levantamento da Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, as necessidades do país em termos de moradia foram dimensionadas em 6,355 milhões de domicílios em 2015, dos quais 5,572 milhões em áreas urbanas de todo o país.
O Estado de São Paulo registra o maior deficit — 1,337 milhões de novas unidades, inclusive para substituir as que estão em área de risco. Desse total, 48% estão na região metropolitana (capital e seus arredores).
Dandara
Uma das alternativas para suprir essa carência é a reforma e a readequação de imóveis antigos, o chamado retrofit, no jargão da arquitetura. Não muito distante das ruínas do Wilton, na avenida Ipiranga, o Edifício Dandara é um exemplo do que pode dar certo no modelo do retrofit.
O prédio abrigou a Justiça do Trabalho na década de 1970. Ficou vazio por 10 anos e foi ocupado em setembro de 2008 por integrantes da Unificação das Lutas de Cortiços e Moradias, um dos 150 movimentos filiados à União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e que só atua na capital paulista. O edifício incorpora 120 unidades habitacionais.
— Desde o incêndio do Wilton, o Dandara tem se tornado um contraponto para mostrar soluções bem-sucedidas — afirma o representante paulista na UNMP, Sidnei Pita.
De acordo com o ativista, que esteve à frente da ocupação do edifício, a árdua batalha foi vencida em três frentes: a União, proprietária do imóvel, foi pressionada a mudar a sua destinação do imóvel; a prefeitura a aprovar o projeto; e a Caixa Econômica Federal, a conceder o financiamento.
O vínculo jurídico dos moradores com o Dandara não é o de propriedade, praxe para quem recebe unidades em conjuntos habitacionais, mas o de Concessão Real de Direito de Uso (CDRU) por tempo indeterminado. Pita explica que os ocupantes não podem comercializar os imóveis. Assim, qualquer mudança precisa passar pelo crivo do movimento.
As obras de reforma e readequação começaram em 2013, com a maior parte dos recursos oriunda do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) — Entidades. Os ocupantes do Dandara participaram desde a escolha do material até a administração da obra.
É um caso de sucesso em meio a cerca de 70 imóveis ocupados — números da prefeitura paulistana — e demandando regularização, conforme Evaniza Rodrigues, integrante da UNMP. Os movimentos ainda não traçaram um perfil dos cidadãos que ocupam esses prédios públicos, com base em pesquisa. O que as organizações têm por certo é que se trata de indivíduos sem renda ou famílias que recebem até R$ 1.800,00, enquadrados, portanto, na chamada faixa 1 do MCMV.
Segundo Ivaniza, o perfil dos ocupantes varia conforme o imóvel, embora não haja distinção de gênero, raça, cor e religião. Uma característica importante, aponta, é o protagonismo das mulheres chefes de família. Essa coletividade é formada por pessoas em situação de rua, desempregados ou trabalhadores na informalidade, como camelôs e catadores de lixo. Entre eles podem estar refugiados, dependentes químicos e vítimas de distúrbios mentais.
Há outro contingente: o dos assalariados de baixa renda — em bares e restaurantes, por exemplo. Eles enfrentam tantas dificuldades de locomoção, que acabam se engajando nos movimentos sociais em busca de moradias em locais mais próximos, em geral nos prédios da região central. Deslocamentos de mais de três horas são comuns naquela região metropolitana.
Uso eficiente do solo
Apesar da importância como uma das soluções para o deficit habitacional, especialmente nas grandes cidades, o retrofit não consta da pauta principal dos movimentos por moradia popular. De acordo com Yuri Leão, da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), dos 126 projetos de habitação por interesse social em São Paulo, apenas três se concretizaram por meio da reforma e requalificação dos imóveis.
A explicação está nos complexos desafios das metrópoles brasileiras a exigir um cardápio amplo de medidas.
O especialista em desenvolvimento urbano e consultor do Senado Victor Carvalho Pinto observa que a regra na maioria das cidades é a baixa densidade da ocupação. Isso quer dizer que crescem mais horizontal que verticalmente, privilegiando casas e barracos, ao invés de conjuntos de edifícios planejados. Outra regra é a ocupação irregular do solo, que tem uma relação estreita com a falta de infraestrutura e transporte.
Na opinião do estudioso, mais importante que construir novas unidades é promover o uso eficiente do solo urbano, mediante tributação de lotes ociosos e reforma de prédios abandonados. O Estatuto da Cidade, que regulamentou a Constituição, permite a cobrança de alíquotas progressivas do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) de até 15% do valor do imóvel, o que é muito alto.
— É preciso que os planos diretores façam o mapeamento desses imóveis e que os municípios aprovem leis instituindo essas alíquotas progressivas — ressalta o consultor do Senado.
No caso de imóveis públicos adquiridos por execução fiscal, ele defende sua imediata devolução ao mercado, inclusive por meio da integralização de quotas de fundos imobiliários, como autoriza a legislação desde 2015.
Requisição
Para melhorar esse cenário, o Senado tem apresentado algumas iniciativas. Uma delas é o PLS 65/2014, do senador Paulo Bauer (PSDB-SC), que autoriza as prefeituras a requisitarem imóveis abandonados, em áreas de risco ou atingidos por alguma catástrofe, como alternativa à desapropriação. Conforme o consultor, essa requisição está prevista na Constituição, mas até hoje não foi regulamentada.
Carvalho Pinto diz que a requisição é “absolutamente necessária” em uma situação de iminente perigo público, quando precisam ser tomadas providências imediatas, independentemente da propriedade do imóvel, como era o caso do edifício Wilton. O projeto, que aguarda atualmente novo relatório do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), prevê a criação de um fundo de que os antigos proprietários se tornem cotistas.
Os sócios, assinala o consultor, vão poder comercializar as cotas ou trocá-las por um imóvel novo a ser produzido no processo de reurbanização da área. Esse mecanismo, segundo ele, é inspirado no “reajuste de terras”, adotado com sucesso pelo Japão há anos para reconstruir imóveis e bairros inteiros destruídos por catástrofes, como tsunamis e terremotos.
Outro exemplo, citado pelo senador Paulo Bauer na justificação do projeto, é a reconstrução de Beirute na década de 1990, após a guerra civil do Líbano. Todos os imóveis da cidade foram integralizados por lei no capital de uma empresa criada para reconstruir Beirute. Os antigos proprietários tornaram-se acionistas dessa companhia. A capital libanesa foi reconstruída com sucesso e se tornou um modelo de bom urbanismo.
Reparcelamento
Aprovado no Senado e enviado à Câmara, o PLS 504/2013, de autoria do senador Wilder Morais (DEM-GO), prevê a desapropriação para reparcelamento do solo como forma de reurbanizar áreas urbanas degradadas. A matéria tramita naquela Casa sob o número PL 6.905/2017. Segundo o consultor do Senado, às vezes é necessário reconstruir não um prédio isolado, mas um conjunto de edificações que foram abandonados ou mudaram de função, a exemplo de antigas áreas industriais, ferroviárias e portuárias.
A atual legislação de desapropriação é ruim, na avaliação do especialista. No primeiro momento paga-se pouco ao proprietário, que fatalmente recorre à Justiça. O processo pode demorar décadas e depois resultar em um precatório de alto custo para o poder público. O PL 6.905 procura adotar mecanismos que favorecem um acordo, inclusive por meio de mediação e arbitragem, como a permuta do imóvel original por outro a ser produzido no âmbito da reurbanização.
Também permite que se faça uma boa oferta inicial aos proprietários, a fim de que a desapropriação se resolva rapidamente. Além disso, viabiliza a alienação de parte dos imóveis para financiar a operação de reurbanização. O mecanismo é muito atual e praticado em outros países, frisa Carvalho Pinto.
Energia elétrica
A proposta mais recente (PDS 56/2018) foi apresentada pelo senador Álvaro Dias (Pode-PR) em maio, depois da tragédia do edifício Wilton. Ela susta parte de normas da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) que prevêem a obrigatoriedade de fornecimento de energia para qualquer tipo de domicílio, regular ou irregular.
Na prática, diz Carvalho Pinto, esse normativo está criando um incentivo à ocupação irregular do solo. Hoje, se um grupo criminoso desmata e implanta um assentamento na Amazônia, a concessionária é obrigada a levar energia ao local.
Para o autor do projeto, as normas de energia elétrica precisam estar harmonizadas com a legislação urbanística e ambiental. O consultor informa que a Aneel já está revendo suas normas para adequá-las à nova lei de regularização fundiária, aprovada no ano passado, que prevê o desestímulo à formação de novos assentamentos informais como diretriz. E condiciona a regularização dos assentamentos existentes à aprovação de um projeto urbanístico pelo município.
Marcha
Apesar de algumas dessas iniciativas contribuírem para reduzir a burocracia, agilizar a reurbanização e a destinação de imóveis e áreas nas cidades, os movimentos nacionais voltados para moradia popular estão mais preocupados com o volume de recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), principal fonte do programa MCMV.
Na Marcha Nacional pelo Direito à Cidade, que reuniu em Brasília representantes de cinco movimentos nacionais e um regional, de 5 a 7 de junho, um dos itens da carta entregue aos ministros das Cidades e da Casa Civil era defender a manutenção dos recursos do FGTS para moradia popular.
A maior preocupação está com os projetos em tramitação no Senado, que autorizam a utilização do FGTS para outras finalidades, como o PLS 454/2015 da senadora Simone Tebet (MDB-MS), que permite o uso para pagar faculdades, especialmente na fase de conclusão de cursos. Com essa proposta, tramitam em conjunto outras seis, entre elas o PLS 581/2007, do senador Paulo Paim (PT-RS), que permite a utilização do FGTS para quitar o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).
O presidente da Conam, Getúlio Vargas Júnior, diz que se esses projetos forem aprovados haverá uma redução substancial dos recursos do FGTS para a habitação destinada à baixa renda, o que justifica a posição contrária dos movimentos nacionais em relação a essas propostas.
Embora haja esse temor dos movimentos, a tramitação desses projetos parece ter entrado em compasso de espera. Um requerimento do senador Valdir Raupp (MDB-RO), que está no Plenário, pede que cerca de 20 projetos sobre o FGTS tramitem em conjunto com os outros que estão na Comissão de Educação. Ou seja, tudo indica que o avanço dessas propostas deverá ser bem lento.
(Fonte e fotos: Agência Senado)